Eu estava paginando matéria sobre a minha ida à Polônia, umas duzentas fotos espalhadas pela mesa, procurava o cromo da rua Mila que eu fotografara, rua do gueto de Varsóvia.
Adolpho apareceu no corredor e pensei que ele vinha ver o material que eu trouxera. Somente quando chegou perto é que notei que ele trazia alguma coisa de encontro ao peito, um peito enorme de russo branco, de eslavo, de mujique, um peito rasputiniano.
Ia mostrar-lhe a rua Mila quando ele colocou em cima das fotos uma filhote de setter, menor do que a mão dele. “Toma. Dê um nome bonito. Sua vida vai ficar diferente.”
Com o cromo da rua Mila não mão, não tinha escolha. “Vai se chamar Mila.” Adolpho achou o nome bonito e saiu de perto. Mila olhou para ele, depois olhou para mim. Acredito que, por um momento, ficou indecisa, sem saber quem seria o seu dono. Eu estava no meio de um trabalho, a produção esperando para fechar o caderno.
Outra vez não tive escolha. Peguei Mila, olhei seus olhinhos que mal se abriam. Ela procurou o meu peito e eu o dei, para sempre. Providenciei a mudança de caderno e deixei o trabalho para o dia seguinte. Afinal, recebera uma tarefa nova, prioritária – e como!
Mila mudou minha vida. E me ligou ainda mais a Adolpho. Foi meu regra-três no amor de Mila. Ensinou-me a cuidar dela. Quando vinha visitar-me, ela adivinhava que Adolpho chegava. Ia esperá-lo na porta, os olhinhos cor de mel brilhando de alegria.
Na casa dele, em Teresópolis, Mila era recebida como uma rainha, podia fazer tudo, inclusive cair na piscina, o pessoal reclamava. Adolpho achava graça. Em maio, choramos juntos quando Mila se foi, o Fernando Barbosa Lima, que estava junto, também ficou abaldo, ele tem o Sony, um labrador que era uma espécie de irmão da minha setter.
Foram 13 anos com Mila. Trinta anos com Adolpho. Não reclamo das perdas. Em vez de uma, tenho agora duas memórias que me perdoam quando aceito a culpa de ter ficado mais só.
Carlos Heitor Cony
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